O Cânon Bíblico
Com o objetivo de proporcionar uma concreta colaboração a quem deseja aprender um pouco mais sobre a Bíblia, este é o terceiro de uma série de quatro artigos sobre algumas importantes questões que servem de base para um seguro aprofundamento da Sagrada Escritura. Os temas tratados são: 1- Inspiração Bíblica; 2- Gêneros literários na Sagrada Escritura; 3- O Cânon Bíblico; 4- A interpretação do texto bíblico.
Cada artigo foi elaborado de modo resumido, a fim de introduzir o leitor nos principais pontos introdutórios do estudo bíblico, mas sem pretender ser exaustivo. A finalidade é justamente contextualizar, esclarecer e apontar caminhos para ulteriores descobertas que façam a leitura do texto sagrado ser realizada com maior proveito espiritual. Que Nossa Senhora D’Ajuda interceda junto a Deus por todos aqueles que, junto com o salmista, reza confiante: “Lâmpada para os meus passos é a tua palavra, e luz para os meus caminhos.” Salmos CXIX, 105.
“Examinais as Escrituras, visto que julgais ter nelas a vida eterna: elas são as que dão testemunho de mim.” S. João V, 39
A Bíblia é um conjunto de livros sagrados que surgiram independentes uns dos outros mas que com o tempo foram dispostos num único volume. Diante desta afirmação é natural que surja a seguinte pergunta: quem unificou todos estes manuscritos fazendo com que eles se tornassem uma só obra? Afinal de contas são documentos escritos por autores diferentes, em lugares diferentes, línguas diferentes e num amplo arco de tempo (estima-se que entre o primeiro livro a ser escrito e o último, passaram-se mais de mil anos). Na própria Bíblia não há, obviamente, nenhuma lista que aponte quais livros devem ser considerados sagrados, o que permite concluir que uma autoridade legítima e extrabíblica foi acionada para realizar este importantíssimo trabalho. Daqui infere-se a questão do chamado cânon bíblico.
O termo “cânon” é de origem grega (Kanón) e significa literalmente “cana”, era uma espécie de vara (régua) que servia aos antigos para medir. Posteriormente assumiu significados mais amplos como “norma” ou “regra” e passou a ser usado entre os gregos para designar a medida correta das virtudes a fim de se alcançar um elevado ideal de vida. No contexto da ciência bíblica a palavra cânon tomou o sentido de confirmação da inspiração divina de um livro sagrado, isto é, a ratificação oficial de que determinado livro realmente foi escrito sob a assistência do Espírito Santo. Os livros da Bíblia são, portanto, chamados de canônicos.
Na antiguidade a quantidade de escritos religiosos era muito grande tanto no contexto do povo hebreu quanto depois no meio dos primeiros cristãos, e nem todas essas obras foram consideradas canônicas. Em vista disso as perguntas são pertinentes: quem dava a palavra final para definir quais daqueles livros existentes eram canônicos e quais não eram? Como era feito o discernimento?
Antes de tratar sobre a questão é importante esclarecer o sentido de alguns conceitos que serão importantes para a compreensão deste texto. Dentre os escritos que surgiram nas efervescências religiosas do período antigo, pode-se distinguir: os livros canônicos (protocanônicos e deuterocanônicos) e os livros não canônicos (apócrifos). Os protocanônicos são aqueles que foram considerados inspirados desde o primeiro momento. Os deuterocanônicos obtiveram a confirmação da inspiração algum tempo depois. Os apócrifos (ocultos) não eram usados nas assembleias litúrgicas por não gozarem da inspiração divina, mas podiam ser lidos particularmente, pois continham importantes informações históricas e culturais da época. Os biblistas modernos chamam de pseudoepígrafes os apócrifos que possuem falsa autoria.
Cânon do Antigo Testamento
Na antiguidade a escrita era uma arte muito cara e muito rara, e quem já estudou as particularidades das culturas antigas certamente sabe que para esses povos as palavras faladas eram mais dignas de crédito do que as palavras escritas. Identificando-se naturalmente à alma de sua época, a religião judaica sabia proteger os seus ensinamentos ao abrigo da memória e por isso não era o que se poderia chamar de uma “religião do livro”, mas uma “religião do culto”; era o Templo o grande centro da devoção de Israel e a Torá era mais do que uma escritura, era um objeto litúrgico. As tradições escritas do povo hebreu foram se formando muito paulatinamente, e somente através de impactantes acontecimentos (como a destruição do Templo no sexto século a. C.) é que elas tomaram cada vez mais importância, embora sem que houvesse ainda uma preocupação em catalogar num acervo oficial os livros considerados sagrados. Deste modo, foi entre muitas variações que se formou a chamada biblioteca de Israel.
Como dito acima, não havia entre os judeus uma lista oficial completa e fechada de livros sagrados. E nem poderia haver, dado que essa visão de conjunto que hoje temos da Escritura ainda não era tão clara para os chefes religiosos daquele povo; quanto à massa em geral, transmitia suas tradições na maior parte das vezes através da educação doméstica e por via oral, de modo que questões mais complexas lhe eram alheias. Ademais, as tradições judaicas se baseavam nos primeiros cinco livros bíblicos (Pentateuco, conhecido como a Torá/Lei), que eles consideravam a parte mais sagrada e importante da Escritura, e nesse ponto não havia nenhuma discordância, os judeus de todas as partes eram unânimes em admitir como inspirados os livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Mas com essa exceção da Torá, em nenhum momento houve a esse respeito um consenso geral no seio das diferentes tradições judaicas que se formaram ao longo do tempo.
Na Palestina os judeus usavam a Escritura Hebraica; era dividida em Lei, Profetas e Escritos; motivo pelo qual ficou conhecida como TANAKH (iniciais hebraicas de cada uma das três partes, Torá, Neviim e Ketuvim). Em Alexandria (Egito), no entanto, havia uma importante colônia judaica que vivendo numa terra estrangeira e falando língua estrangeira (o grego), contava entre seus escritos sagrados, já desde os séculos III-II a.C., alguns livros escritos na língua grega e que não estavam na versão palestinense. Tais livros, juntos com os outros traduzidos do hebraico, formavam a Bíblia das comunidades judaicas que habitavam fora da Palestina. Conta-se uma famosa lenda que esta tradução teve origem milagrosa: o rei Ptlomeu II Filadelfo (285-247 a.C.), querendo possuir na sua biblioteca um exemplar grego dos livros sagrados dos judeus, teria pedido ao sumo sacerdote Eleázaro de Jerusalém que lhe enviasse os melhores tradutores. Eleázaro teria enviado seis sábios de cada uma das doze tribos de Israel (portanto, 72 sábios) para Alexandria; estes teriam sido encerrados em 72 alojamentos isolados e, não obstante, produziram identicamente o mesmo texto grego do Antigo Testamento – o que só podia ser um portentoso milagre. A lenda se espalhou e fez com que a tradução alexandrina fosse também chamada “dos Setenta Intérpretes” ou Septuaginta. Esta versão incluía as seguintes obras que não estavam no texto hebraico e hoje chamadas de deuterocanônicas: TOBIAS, JUDITE, SABEDORIA, BARUQUE, ECLESIÁSTICO (ou Sirácida), I E II MACABEUS, e também alguns fragmentos, como os de Ester X, 4-16, XXIV; Daniel III, 24-90; XIII-XIV.
Além dessas variações entre a Bíblia Hebraica e a Bíblia Grega (Septuaginta), consta que mesmo na época de Cristo haviam muitas outras divergências em se tratando dos escritos bíblicos entre os vários grupos de judeus, como por exemplo os saduceus, que só acreditavam na sacralidade da Torá (Pentateuco), enquanto os fariseus acreditavam igualmente na sacralidade dos Profetas e dos Escritos. Isso confirma que o judaísmo em nenhum momento fez questão de definir tais assuntos e que a variedade dos cânones do Antigo Testamento não era um problema até então relevante para eles.
Os Apóstolos e os Evangelistas escreveram o Novo Testamento na língua grega e quando iam citar em seus textos alguma passagem do Antigo Testamento, faziam-na conforme a versão de Alexandria (que possuía os deuterocanônicos) mesmo quando esta diferia do texto hebraico. O Novo Testamento faz cerca de 350 citações de textos do Antigo Testamento, destas, pelo menos 300 provêm da versão grega. Um exemplo claríssimo está no capítulo sétimo e versículo 14 de Atos dos Apóstolos, na ocasião em que Estevão foi levado ao Sinédrio pela multidão, ele cita Jacó trazendo seus 75 descendentes para o Egito. Nos textos hebraicos, porém, são ditos que Jacó levou para o Egito 70 descendestes, e não 75 (Dt X, 22; Ex I, 5; Gên XLVI, 26); mas Estevão não citava a versão hebraica e sim a grega, que em Gên XLVI, 26 aponta os cinco nomes ausentes do texto massorético hebraico (Makir, filho de Manassés; Makir, filho de Galaad; Taam; Sutalaam; Edon). Já no evangelho de São Mateus, capítulo quarto e versículo 10, Cristo rebate o demônio com as seguintes palavras: “Vai-te, satanás, porque está escrito: ao Senhor teu Deus ADORARÁS, e só a Ele servirás”; esta é uma citação literal da Septuaginta de Deuteronômio VI, 13, que na versão hebraica usava termos diferentes: “TEMERÁS o Senhor teu Deus, só a Ele servirás, e jurarás pelo seu nome”. Também há variações em Hebreus X, 5 citando o Salmo XL, 7; bem como em Hebreus X, 37s ao citar Habacuque II, 3s; em Atos XV, 16s citando Amós IX, 11s, dentre outros inúmeros exemplos. O fato é que o texto grego da Septuaginta tornou-se a forma comum na Igreja primitiva e em consequência disso o Cânon amplo, incluindo os 7 livros deuterocanônicos e os fragmentos citados, passou para o uso cristão.
O surgimento da Igreja causou entre os judeus uma até então inédita preocupação em catalogar de modo definitivo os seus escritos sagrados. É que começaram a surgir diversos livros de inspiração cristã e para evitar que estes fossem aglutinados à literatura de Israel, a tradição judaica (superada, na medida em que Cristo havia instaurado a sua Nova e Eterna Aliança) passou a traçar alguns parâmetros para que um livro fosse considerado inspirado; o objetivo era sobretudo afastar a religião de Israel da religião cristã. Por este motivo os rabinos se reuniram em Jamnia no final do primeiro século d. C. e definiram quais livros deveriam ser reconhecidos pelos judeus. Os critérios para a escolha foram 4, a saber: 1- o livro não pode ter sido escrito fora da terra de Israel; 2- não pode ter sido escrito em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico; 3- não pode ter sido escrito depois de Esdras (séc. IV a.C.); 4- não pode ter contradição com a Torá ou Lei de Moisés. É preciso repetir: tais critérios são arbitrários e foram formulados pelos judeus tão somente para coibir que os livros do Novo Testamento fossem integrados aos do Antigo. É verdade que alguns poucos estudiosos chegam por vezes a questionar se realmente houve esse Concílio de Jamnia definindo a lista de livros canônicos, mas debalde esses amantes do revisionismo histórico manobram, pois os testemunhos históricos mais robustos atestam a existência e o conteúdo de Jamnia, e negar tão abundantes evidências seria faltar gravemente contra a verdade histórica.
Nesses primeiros tempos da era cristã a lista canônica do Antigo Testamento continuava indefinida e discutida, sobretudo a partir do segundo século, ocasião em que os cristãos passaram a debater questões teológicas com os judeus; posto que estes haviam recentemente excluído os deuterocanônicos, para as discussões os primeiros cristãos evitavam usar esses livros que eles rejeitavam, da mesma maneira como atualmente os católicos evitam usar os deuterocanônicos em debates com os protestantes. O motivo é óbvio: num debate não adianta usar argumentos que tenham origem em fontes que o oponente rejeita. Dentro do período conhecido como a Patrística, que foi um movimento filosófico e teológico desenvolvido na transição da antiguidade para o medievo, as discussões sobre o cânon da Bíblia ganhou muito espaço. Havia contradições nas listas canônicas dos Pais da Igreja (influentes e muito importantes teólogos que viveram entre o final do primeiro século até o século sexto da era cristã). São Jerônimo não considerava como inspirado os deuterocanônicos do Antigo Testamento, segundo alguns estudiosos porque ele sofreu influência dos rabinos de quem aprendeu o hebraico para realizar a sua tradução. Já Santo Agostinho incluía os deuterocanônicos na sua lista canônica. O número de cânones propostos era muito grande, de tal forma que é impossível citar aqui todos os pormenores destas divergências. Para o objetivo deste trabalho, basta compreender que essa variedade de posições demonstra claramente que nos primeiros tempos da era cristã não havia consenso no que se refere ao cânon do Antigo Testamento.
É nesse cenário de muitas interrogações que a Igreja Católica, mediante acurada perícia e fazendo valer as suas legítimas prerrogativas, estabeleceu o Cânon da Sagrada Escritura durante os Concílios Regionais de Hipona (393), Cartago III e IV (397 e 419) e Trulos (692); bem como nos Concílios Ecumênicos de Florença (1442), Trento (1546) e Vaticano I (1870). Em todos estes concílios a posição foi de que os livros deuterocanônicos presentes na Septuaginta (Bíblia Grega) deveriam também ser reconhecidos como canônicos. Alguém poderia perguntar o motivo da Igreja precisar de tantos concílios para definir uma única questão; na verdade, após o cânon ter sido decidido em Hipona, os concílios subsequentes não tinham o objetivo de fazer nenhuma reformulação, mas sim confirmar o que já havia sido decidido, e assim o fizeram. Durante toda a história da Igreja é muito comum que haja reafirmação de verdades já antes definidas, não por existir uma possibilidade de mudança, e sim porque no campo da fé os erros de outrora costumam ser requentados e reapresentados numa nova roupagem, causando novamente divisões e confusões entre os fieis e exigindo, assim, que a Igreja confirme outra vez a sua doutrina. De fato, a missão do ministério petrino não é outra senão confirmar os irmãos na fé (S. Lucas XXII, 32). Nesse sentido, as divergências que permaneciam entre alguns cristãos com relação ao cânon da Escritura estavam puramente no campo das opiniões particulares; o posicionamento unânime dos concílios deixa cristalino que a Igreja já havia feito a sua escolha.
Com o surgimento do Protestantismo no século XVI, a temática do cânon bíblico voltou à baila com muita intensidade. Martinho Lutero, principal personagem desse movimento, traduziu a Bíblia do latim para o alemão (1534), e embora tenha traduzido também os deuterocanônicos, tratou-os como apócrifos. Por qual motivo? Primeiramente é necessário compreender que desde os seus primórdios a Revolução Protestante flertou com muitas concepções teológicas de algumas alas do judaísmo, a ponto de ter se tornado uma religião judaizante. Aqui é preciso voltar um pouco na história para entender a dinâmica da transição judaísmo-cristianismo. Na Igreja primitiva, pelo fato de Cristo ter vindo primeiramente para Israel, muitíssimo dos primeiros cristãos eram oriundos da religião judaica, o que num primeiro momento resultava em certas dificuldades de alguns desses convertidos para compreenderem com clareza que Cristo havia cumprido com plenitude a Antiga Lei e como verdadeiro Cordeiro de Deus, na cruz, realizou o sacrífico de uma vez por todas (Hebreus X, 10); é nesse contexto de hesitação entre continuar ou não a prática dos rituais e das leis mosaicas que os apóstolos perceberam a necessidade de convocarem o primeiro concílio da Igreja, chamado de Concílio de Jerusalém (Atos XV, 1-31). A questão foi resolvida; os cristãos estavam desobrigados da circuncisão e das outras práticas ritualísticas antigas, e a partir daí foi tornando-se cada vez mais claro que a religião judaica só tinha razão de ser até a chegada de Cristo, pois a Igreja que Ele edificou agora é a Nova Israel que convoca e congrega a todos, e portanto sob a pedra fundamental da Igreja jaz a religião judaica. O caminho havia claramente se bifurcado: de um lado o judaísmo permanecendo sob o regime da lei judaica e recusando a redenção de Cristo, do outro lado os cristãos que caminhavam sob o influxo da graça de Nosso Senhor. Assim, ao longo da história que se seguiu, judeus e cristãos travaram duríssimas batalhas teológicas e também políticas.
Quando Martinho Lutero se rebelou ele viu-se de algum modo unido aos judeus, mestres veteranos no combate a Igreja. Segundo um antigo ditado: “O inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Lutero reconheceu no pensamento judaico um poderoso auxílio doutrinário para a sua rebelião. Não é à toa que na pregação inicial do protestantismo estava o apelo à Igreja para que voltasse às suas raízes judaicas, pois segundo os revolucionários a herança helênica havia sido causa de uma grave corrupção durante o estabelecimento da fé cristã. O movimento protestante tendeu ao judaísmo muitas vezes em detrimento do próprio cristianismo, e por isso preferiu escutar a sinagoga do que a Igreja quando se tratou do cânon do Antigo Testamento. Além desse fator, houve em 1519 um debate público entre Lutero e o frade dominicano Eck (Debate de Leipzig). Nessa discussão o frade usou algumas passagens do livro de Macabeus para fundamentar a doutrina do purgatório, que Lutero combatia, e este se sentindo acuado não teve outra saída senão passar depois ao ataque contra o referido livro. Nesse contexto de querer a todo custo ir combatendo partes importantes do patrimônio espiritual da Igreja, o protestantismo decide rejeitar a inspiração sagrada dos livros deuterocanônicos; o Concílio de Trento (1546) respondeu reafirmando em definitivo que os deuterocanônicos fazem parte da Escritura Sagrada. Atente-se, porém, ao fato de que em Trento a Igreja não realizou nenhuma alteração, mas apenas confirmou as decisões dos concílios anteriores, prova disso é que o cânon do Antigo Testamento usado pela Igreja Ortodoxa no Oriente também é o da Septuaginta (inclusive com alguns outros livros que a Igreja Católica não assumiu), e a comunhão dos ortodoxos com a Igreja de Roma havia cessado desde o ano 1054. Portanto, não há absolutamente nenhuma base histórica para afirmar que a Igreja tenha acrescentado livros à Bíblia durante o Concílio de Trento.
Mas os protestantes continuaram contestando o cânon usado pela Igreja, e até apelaram para o fato do Novo Testamento não possuir citações dos livros deuterocanônicos, mas esse argumento não poderia ser válido, pois também há livros protocanônicos (presentes tanto nas Bíblias católicas quanto protestantes) que não são citados nos escritos do Novo Testamento, tais como Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum e Rute. Deveriam também estes deixarem de ser considerados inspirados? Há livros protocanônicos que nem sequer mencionam o nome de Deus, como é o caso de Ester e Cânticos dos Cânticos, sendo este último um poema de amor sem meias palavras. Enquanto isso, em S. Judas I, 9 o autor cita um episódio da “assunção de Moisés”, acontecimento não revelado nos livros canônicos do Antigo Testamento, e na mesma epístola ainda é citada uma profecia de Enoque, livro que também não consta nem no cânon católico nem no protestante. Enfim, o argumento não se sustenta, pois estar ou não estar nas citações do Novo Testamento não configura como critério de inspiração. Além disso, se não há citação explícita, há inúmeras citações implícitas em diversas passagens. Veja o seguinte texto de S. Mt XI, 25: “Quando estiverdes orando, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai-lhe, para que também vosso Pai, que está nos céus, vos perdoe os vossos pecados”; compare agora com este versículo de Eclo XXVIII, 2: “Perdoa ao teu próximo que te ofendeu, e então, quando pedires, serão perdoados os teus pecados”. Também vale a pena ler esta passagem tirada do Evangelho de S. Lucas XII, 21: “Sobre isto propôs-lhes esta parábola: Os campos de um homem rico tinham dado abundantes frutos. Ele andava discorrendo consigo; que farei, pois, não tenho onde recolher os meus frutos? Depois disse: farei isto: Demolirei os meus celeiros, fá-los-ei maiores, neles recolherei todas as minhas novidades e os meus bens, e direi à minha alma: ó alma, tu tens muitos bens em depósito para largos anos; descansa, come, bebe, regala-te. Mas Deus disse-lhe: néscio, esta noite te virão demandar a tua alma; e as coisas que juntaste, para quem serão? Assim é o que entesoura para si, e não é rico para Deus”; compare com o seguinte trecho de Eclesiástico XI, 18-20: “Há quem enriqueça, vivendo com parcimônia, e toda a parte da sua recompensa consiste em dizer: encontrei repouso, e agora comerei sozinho dos meus bens. (Esse) não considera que o tempo passa, que a morte se avizinha, e que, morrendo, deixará tudo aos outros.” São textos com uma incrível semelhança. Pode-se comparar igualmente Romanos I, 19-32 com Sabedoria XIII, 1-9; S. Mateus XXVII, 43 com Sabedoria II, 13.18; Apocalipse VIII, 2 com Tobias XII, 15; e muitas outras passagens com evidentes paralelismos.
O protestantismo por todos os meios continuou tentando desqualificar a versão Septuaginta da Escritura, inclusive fez uso equivocado da seguinte passagem: “Por isso, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas; matareis e crucificareis uns, e açoitareis outros nas vossas sinagogas, e os perseguireis de cidade em cidade, para que caia sobre vós todo sangue justo que se tem derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o templo e o altar” (S. Mateus XXIII, 34-35). Pretendem os protestantes que essa fala de Cristo exclui os deuterocanônicos, já que Abel teria sido o primeiro assassinado do Antigo Testamento e Zacarias o último (II Crônicas XXIV, 20-22), sem levar em conta os mártires Macabeus. Mas acontece que aqui há um problema: esse Zacarias do livro de Crônicas era filho do sacerdote Joiada e não de Baraquias. O Zacarias, filho de Baraquias, seria outro personagem do Antigo Testamento (Zacarias I, 1). Algumas teorias apontam para a possibilidade de serem a mesma pessoa, tendo como explicação para a diferença no nome do pai uma questão de ordem literária, mas permanece apenas como uma teoria. Uma outra observação a ser levada em conta é que esta mesma passagem quando relatada por outro evangelista começa com termos que deixa a entender ser essa fala de Cristo uma citação de alguma profecia ou outra tradição religiosa daquele povo; a narrativa começa assim: “Por isso disse a sabedoria de Deus: mandar-lhes-ei profetas e apóstolos…”. S. Lucas XI, 49-51. Seria, no mínimo, imprudência usar um texto isolado e de sentido complexo para fundamentar uma teoria com tão vastas consequências. Além disso, Cristo costumava adaptar seus discursos conforme os vários tipos de ouvintes. Nessa passagem ele tratava com fariseus e escribas, mas quando, por exemplo, discutia com os saduceus que aceitavam apenas o Pentateuco como a Escritura Sagrada por excelência, Nosso Senhor costumava argumentar usando exclusivamente os cinco primeiros livros bíblicos, o que não significava que ele rejeitava os demais. É, portanto, teologicamente e literariamente muito artificial tentar emplacar esse texto como argumento contra a canonicidade dos deuterocanônicos.
Seguindo analisando a argumentação dos protestantes, constata-se que eles, mantendo o costume de favorecer o judaísmo em detrimento do cristianismo, são adeptos da tese de que houve um período “intertestamentário” em que Deus teria suspendido o envio de profetas a Israel. Esse suposto “silêncio de Deus” foi propagado primeiramente pelos rabinos dos primeiros tempos da era cristã, com o intuito de reforçar a convicção de que tanto Cristo quanto seus seguidores não poderiam falar com autoridade divina num tempo em que a profecia havia cessado. O protestantismo assume essa doutrina e toma como base deste estranho ensinamento rabínico textos do historiador judeu Flavio Josefo (primeiro século), que certamente repetia ideias que ouvia nas sinagogas; e também se baseiam em textos do Talmude (um conjunto de registros das discussões rabínicas dos primeiros séculos da era cristã). Segundo o Talmude: “Depois dos últimos profetas, Ageu, Zacarias e Malaquias, o Espírito Santo deixou Israel”. Esta referência, além de ilegítima, é imoral, porque se lê no mesmo Talmude ofensas baixíssimas contra Nosso Senhor, como afirmar que o nascimento milagroso de Cristo teria sido uma farsa, Ele na verdade era uma espécie de mágico e estaria no inferno; essas afirmações são feitas com palavras tão desprezíveis que não serão expostas aqui neste trabalho. Esse documento blasfemo é fonte segura para colher doutrinas? No entanto, para responder de modo claro e direto a teoria da ausência de sucessão profética, basta uma afirmação categórica de Cristo: “Todos os profetas e a lei profetizaram até João” (S. Mateus, XI, 13). Pronto. Aqui não há previsão de nenhuma lacuna, mas uma continuidade profética; essa afirmação do evangelho contrasta em absoluto com as hipóteses dos rabinos e deixa a questão fulminantemente resolvida para o cristão.
Argumenta ainda os protestantes que o texto de Romanos III, 1-2 “Que tem, pois, a mais o judeu? Ou qual é a utilidade da circuncisão? Muita de toda a maneira. Principalmente porque lhes foram confiados os oráculos de Deus”, evidencia a ideia de que a autoridade de indicar o cânon do Antigo Testamento pertencia ao judaísmo, não ao cristianismo. Mas esse modo forçado de interpretar as palavras do Apóstolo é de uma simplificação que mereceria muitíssimos reparos. Ora, quando diz “oráculos de Deus” o texto claramente não está se referindo a um conjunto definido de livros sagrados, mas trata sobre o privilégio de Israel em receber diretamente de Deus às suas leis e profecias. Em tese, poder-se-ia o cânon do Antigo Testamento realmente ter sido definido pelos judeus, desde que o tivessem feito antes de Cristo, o que não o fizeram. E há uma razão muito conveniente para que assunto de tamanha envergadura ficasse por conta da Igreja. O judaísmo era uma religião de espera, noutros termos, o Antigo Testamento não fechava uma circunferência, pois somente a chegada do Filho de Deus daria pleno cumprimento às promessas divinas. Se o cânon do povo de Israel tivesse sido definido antes de Cristo, os dois Testamentos seriam como que dois círculos fechados e independentes, o que não condiz com a realidade, além de impor uma enorme dificuldade à aceitação dos evangelhos como Escritura, tendo esta já sido encerrada num acervo. A verdade é que o Novo Testamento interpreta, realiza e complementa o Antigo, de tal maneira que a Sagrada Escritura, embora dividida tradicionalmente em duas partes, deve ser considerada una e precisa ser lida e compreendida no seu todo. O povo judeu sabia que vivia na expectativa da revelação, o povo cristão sabe que vive na plenitude do tempo e da revelação, como ensina S. Paulo “Mas, quando chegou a PLENITUDE DO TEMPO, Deus enviou seu Filho, feito da mulher…” Gálatas IV, 4. Nessa ordem de ideias, era muito conveniente que os escritos do Antigo Testamento permanecessem abertos à espera dos escritos do Novo para enfim, ambos, serem catalogados pela Igreja, Corpo Místico de Cristo (Colossenses I, 24), que não recebeu apenas oráculos, mas o próprio Deus Encarnado, motivo pelo qual se tornou a “coluna e firmamento da verdade” (I Timóteo III, 15).
Resta ainda apresentar o que concluiu de seus estudos o renomado teólogo e historiador britânico protestante J.N.D. Kelly:
“Deveria ser observado que o Antigo Testamento admitido como autoridade na Igreja era algo maior e mais compreensivo que o Antigo Testamento protestante…ela sempre incluiu, com alguns graus de reconhecimento, os chamados apócrifos ou deuterocanônicos. A razão para isso é que o Antigo Testamento que passou em primeira instância nas mãos dos cristãos era… a versão grega conhecida como Septuaginta… a maioria das citações nas Escrituras encontradas no Novo Testamento são baseadas nelas preferencialmente do que a versão hebraica… nos primeiros dois séculos… a Igreja parece ter aceitado a todos, ou a maioria destes livros adicionais, como inspirados e trataram-nos sem dúvida como Escritura Sagrada. Citações de Sabedoria, por exemplo, ocorrem em 1 Clemente e Barnabé… Policarpo cita Tobias, e o Didache cita Eclesiástico. Irineu se refere a Sabedoria, a história de Susana, Bel e o dragão (livro de Daniel), e Baruc. O uso dos deuterocanônicos por Tertuliano, Hipólito, Cipriano e Clemente de Alexandria é tão frequente que referências detalhadas são necessárias” (Doutrina Cristã Primitiva, páginas 53-54).
Por fim, os outros questionamentos que os protestantes costumam lançar contra os livros deuterocanônicos não tocam diretamente na questão do cânon. São argumentos que fazem uso das mesmas artimanhas que os incrédulos empregam quando vão discorrer sobre Bíblia em geral, como tentar apontar “machismos”, contradições, erros históricos e afins para incitarem a desqualificação da obra e concluírem que são escritos puramente humanos. Erram por servirem-se de uma metodologia anacrônica e que não colocaria apenas os deuterocanônicos em situação duvidosa, mas quase todos os demais livros bíblicos. É um tiro de desespero, daqueles dados por quem não têm nada mais a perder. E ainda assim perdem. Perdem a última munição e o alvo; acertam o próprio pé. A Bíblia cristã sem os livros deuterocanônicos está incompleta.
Cânon do Novo Testamento
A era cristã é inaugurada com a vinda de Cristo ao mundo através do seio virginal de Maria Santíssima. Jesus passou seus primeiros trinta anos vivendo ordinariamente em sua casa, certamente rezando, trabalhando e auxiliando sua família nas agitações cotidianas. Após isso Ele é batizado por São João Batista e dá início publicamente ao seu ministério, que culminaria com sua Paixão, Morte e Ressurreição. Durante todo o tempo em que passou aqui na terra Cristo não produziu nenhuma obra literária, tendo registro apenas de que certa vez Ele escreveu algumas poucas palavras na areia (S. João VIII, 3-11), mas que não chegaram até nós, pois após produzir seus efeitos o próprio Senhor teve o cuidado de apaga-las, senão Ele, o vento ou as chuvas.
Terminada a sua missão na Terra Cristo se elevou aos céus, mas antes disso conferiu à Igreja o ofício de ser a continuadora de sua obra e delegou aos apóstolos o tríplice múnus de ensinar, governar e santificar (S. Mateus XXVIII, 19-20; S. João XX, 22-23). Após receberem o Espírito Santo em Pentecostes, os apóstolos cumpriram as ordens de Cristo e saíram a pregar a todos os povos. O conteúdo básico da pregação era o anúncio de Jesus como o Messias anunciado pelos profetas, que viera reestabelecer a comunhão do homem com Deus através de seu sacrifício na cruz, e por meio de sua ressurreição garantir que todos também ressuscitem e tenham a vida eterna. Era uma pregação nova. Que os judeus esperavam o Messias da parte de Deus, todos sabiam; mas a novidade estava na revelação de que o Nazareno Crucificado era o cumprimento da promessa. Eis aí a Boa Nova. E os judeus rejeitaram.
A Tradição cristã professa a Unidade (primeira parte da revelação) e a Trindade (segunda parte da revelação) de Deus. Os judeus creram na primeira e recusaram a segunda. Apenas a tradição cristã professou a “novidade” da Trindade. No início do cristianismo a Escritura se resumia aos livros do Antigo Testamento, que naturalmente não continham os ensinamentos de Jesus e, portanto, para anunciar as duas partes da revelação, a Igreja principiou o anúncio da Boa Nova através da pregação oral e não por meio de um livro. Além de não ter sido escritor, não saiu da boca de Cristo nenhuma ordem expressa de que os apóstolos escrevessem. No Sermão da Montanha, mesmo citando a Escritura (que poderia ser lida), Nosso Senhor diz: “OUVISTES o que foi dito aos antigos…” (S. Mateus V, 21). O verbo OUVIR é sempre preferido ao verbo LER, porque como diz o Apóstolo São Paulo, a fé vem pelo ouvido (Romanos X, 17). Em sua pregação dizia Nosso Senhor: “Todo aquele, pois, que OUVE estas minhas palavras, e as observa, será semelhante ao homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha.” (S. Mateus VII, 24). Como não lembrar aqui do Shemá Israel? Nesta profissão central da fé monoteísta do judaísmo, relembrada e rezada todos os dias pelos judeus, está a seguinte proclamação: “OUVE, ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. (Deuteronômio VI, 4). O emprego dessas citações não visa menosprezar o conhecimento bíblico, mas comprovar que a teoria segundo a qual a leitura da Escritura é condição para se obter ou discernir a fé não passa de uma doutrina moderna e sem nenhuma fundamentação na própria Bíblia.
O processo de formação do canôn do Novo Testamento assemelhou-se em muitos aspectos à formação do cânon do Antigo Testamento, dando-se ambos de modo gradual e envolto em opiniões discordantes. Os livros foram surgindo separadamente e eram lidos nas assembleias cristãs, sem ainda existir uma lista completa dos que eram considerados sagrados. Alguns livros muito rapidamente foram reverenciados como inspirados, já outros passaram por um longo processo de debate até que fossem tidos como parte da Escritura.
As escrituras neotestamentárias começam a ser reunidas num conjunto por volta do início do segundo século, já quando todos os Apóstolos haviam falecido e com os seus sucessores levando adiante a evangelização. Mas o material literário naquele contexto era amplo e de canonicidade incerta, contendo inclusive belíssimas obras que hoje não se encontram em nosso cânon, como por exemplo a carta de São Clemente aos Coríntios, as sete cartas de Santo Inácio de Antioquia, as cartas de São Policarpo de Esmirna, dentre outras tantas. Com o passar do tempo, alguns livros provindos de grupos heréticos e que possuíam doutrinas suspeitas geraram uma enorme confusão entre os cristãos. Surgiram dezenas de evangelhos e cartas atribuídas falsamente aos Apóstolos e outros personagens importantes da vida de Cristo, como por exemplo o Evangelho de Pedro, Evangelho de Tomé, Evangelho de Maria etc.
No século terceiro o cânon do Novo Testamento ainda não havia sido definido, por isso São Clemente de Alexandria, que viveu entre os anos 150 e 215, não considerava como canônicos a Carta aos Hebreus e a Carta a Judas, ao mesmo tempo que aceitava a canonicidade da Carta de Barnabé e do Apocalipse de São Pedro, obras que a Igreja não manteve em seu cânon. Orígenes, que nasceu por volta do ano 190, também tratou em seus escritos sobre o cânon; ele aceitava a primeira Carta de São Pedro, mas dizia que a segunda era controvertida. Muitos outros autores cristãos dos primeiros quatro séculos da Igreja divergiram em maior ou menor grau a respeito dos livros que deveriam fazer parte da Escritura, dentre eles, São Dionísio de Alexandria, Eusébio de Cesaréia, Santo Atanásio de Alexandria, São Cirilo de Jerusalém, São Jerônimo, São Gregório de Nazianzeno, Santo Epifânio de Salamina etc. Um manuscrito descoberto no século XVIII e que muitos estudiosos acreditam ser do ano 150 é a referência mais antiga que se tem sobre o cânon bíblico do Novo Testamento; o Cânon de Muratori (assim chamado porque o manuscrito foi descoberto pelo sacerdote Ludovico Muratori), não fazia menção às cartas de São Pedro, à terceira carta de São João, à de Judas e à carta aos Hebreus. Ou seja, assim como o cânon do Antigo Testamento, o do Novo não foi definido com facilidade e sem opiniões divergentes.
As obras do Novo Testamento que mais receberam objeções são as seguintes: a carta aos Hebreus, a carta de S. Tiago, a carta II de S. Pedro, as cartas I e II de S. João, a carta de S. Judas, e o Apocalipse. Não obstante todas as discussões, posteriormente todos estes livros foram catalogados pela Igreja como sagrados e são considerados os deuterocanônicos do Novo Testamento. Os motivos das controvérsias eram variados.
A carta aos Hebreus não indica nem autor nem destinatários. Os cristãos orientais a tinham como paulina, ao passo que os ocidentais não. Entre os latinos, em meados do século III, os novacianos rigoristas (que ensinavam haver pecados irremissíveis) valiam-se de Hebreus VI, 4-8 para propor sua tese errônea. Por estes motivos os autores ortodoxos relegaram Hebreus para o esquecimento até a segunda metade do século IV, quando santo Ambrósio e S. Agostinho a reconsideraram. A autoria da carta de S. Tiago também foi discutida, e além do mais, parecia contradizer a doutrina de S. Paulo em Romanos e Gálatas, quando escreveu que a fé sem obras é morta (S. Tiago II, 14-24). Prevaleceu, porém, a consciência de que é escrito canônico, perfeitamente conciliável com os ensinamentos paulinos. A segunda carta de S. Pedro foi controvertida por aparentemente ser uma reedição ampliada de Judas. A segunda e a terceira carta de S. João eram considerados bilhetes pequenos, de pouco conteúdo teológico e por isso nem sempre tratados como obras canônicas. A carta de S. Judas foi mais uma que teve autoria discutida. Além disso, cita trechos de livros apócrifos, como a “Assunção de Moisés” (v. 9) e a profecia de Henoque (v. 14s), o que a tornou suspeita. O Apocalipse também teve autoria discutida. Outro motivo de descrédito foi o fato de um grupo de sectários “milenaristas” apelarem para o texto de Apocalipse XX, 1-15 a fim de defenderem a doutrina de um reino milenar e pacífico de Cristo sobre a terra antes da consumação da história. Por isso o Apocalipse foi objeto de muita suspeitas.
Diante da variedade de tantas opiniões discordantes, a Igreja define o Cânon das Sagradas Escrituras no Concílio de Hipona, realizado em 8 de outubro de 393, onde Santo Agostinho fez o discurso de abertura. O Cânon de Hipona é confirmado pelos concílios posteriores, e de modo dogmático em Trento (1546). Assim a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, confirma a totalidade da Escritura, definindo os livros tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.
No século XVI, Martinho Lutero passou a questionar a autoridade da Igreja Católica e de seus concílios. Por uma questão lógica, quem rejeita a autoridade da Igreja sente-se igualmente livre para rejeitar a própria Bíblia, já que aquela estabeleceu esta e, nesse sentido Lutero ficou muito à vontade para alterar a Escritura, retirando os deuterocanônicos do Antigo Testamento e questionando alguns livros do Novo Testamento, como a carta aos Hebreus, a carta de S. Tiago, a de S. Judas e o Apocalipse. Lutero chegou a chamar a Epístola de S. Tiago de “carta de palha” (isto é, inútil e sem valor), porque enquanto o Apóstolo diz que a fé sem obras é morta (S. Tiago II, 17), ele afirmava que somente a fé salva. Em sua versão alemã de Romanos I, 17 “O justo viverá pela fé”, Lutero traduz “O justo viverá SOMENTE pela fé”, acrescentando no texto uma palavra que não existe no original grego. Quanto ao Apocalipse, Lutero dizia que não era “Nem apostólico, nem profético”. Não obstante isso, o Novo Testamento do protestantismo acabou por ser o mesmo da Igreja Católica, com os seus 27 livros.
Ao se rebelar contra a Igreja, Lutero assentou como uma das principais bases de seu movimento o princípio do Sola Scriptura, isto é, a crença exclusiva na Bíblia como autoridade nos assuntos de fé. A contradição começa quando nem ele sabia o que era a Bíblia, já que recusava diversos livros que depois faria parte da sua própria Escritura, como os que foram citados no parágrafo anterior. Ainda sobre este ponto, é preciso deter um pouco mais para uma contextualização geral da situação. A primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses é o livro mais antigo do Novo Testamento, foi escrito por volta do ano 50, ou seja, Cristo já havia se elevado aos céus e a Igreja já exercia sua missão há cerca de 20 anos. O último livro do Novo Testamento foi o Apocalipse, escrito por volta do ano 90, segundo os estudiosos. Daqui se pode concluir que a Igreja com sua pregação oral é anterior aos escritos do Novo Testamento. Nesse sentido, é falso o princípio protestante do Sola Scriptura, segundo o qual a Bíblia tem absoluta primazia, inclusive sobre a Igreja, e que somente a Escritura pode ser a regra de fé dos cristãos. Ora, princípio é justamente aquilo a partir do qual uma coisa é; isso significa que o princípio de uma coisa está no início da ordem de realidade dessa coisa. Os livros do Novo Testamento não precedem a Igreja, mas são posteriores a ela. Em vista disso, o Sola Scriptura é mais do que um erro teológico, é um erro filosófico, lógico, metafísico. Um cristão que professou a sua fé poucos anos após a morte e ressurreição de Cristo não poderia se valer dos escritos do Novo Testamento e ainda assim era cristão legítimo, então o Sola Scriputa não passa de um princípio desordenado que contradiz a essência do cristianismo. A Bíblia em seus dois testamentos é uma realidade para onde Igreja chegou, e não de onde partiu.
No entanto, para combater a verdade de que o Cânon Bíblico foi obra de discernimento da Igreja Católica, os protestantes costumam argumentar que a definição dos livros canônicos não aconteceu por intermédio de uma autoridade institucional, mas de uma aceitação universal da voz de Deus que falava para a Igreja através da Escritura. Ou seja, o cânon se impôs de um modo sobrenatural pelo testemunho interior dos cristãos, que de modo orgânico e iluminados pelo Espírito Santo chegaram a uma conclusão única e definitiva. Ora, essa análise piedosamente convencional não condiz com a verdade dos fatos históricos. O consenso de que o novo Testamento possuía 27 livros só foi alcançado após a Igreja resolver a questão, antes disso havia variedade de opiniões, das mais prudentes até as mais extravagantes e heréticas. A Tradição Católica inegavelmente berçou a Sagrada Escritura e por isso a autoridade espiritual da Igreja é garantia da legitimidade da Bíblia, sendo preciso fazer exigências extremas à imaginação para concluir que a formação do Cânon deu-se em definitivo através de revelações e iluminações particulares. É uma teoria possível apenas no mundo da fantasia, adquirida ao preço da realidade.
Fato muito curioso é que quando vai tratar do Cânon do Antigo Testamento, o protestantismo rapidamente trata de conceder autoridade objetiva à sinagoga para definir institucionalmente o conjunto de livros sagrados. Mas quando ocupa-se do Cânon do Novo Testamento, realiza as mais habilidosas acrobacias para minimizar a autoridade da Igreja e apelam, sem nenhuma cerimônia, para o campo minado do subjetivismo. Segundo o protestantismo, os rabinos da Palestina eram mais autorizados do que os sucessores dos Apóstolos. A teologia protestante mutilou o cristianismo ao tentar separar o Corpo (a Igreja) da Cabeça (Cristo), o resultado não poderia deixar de ser trágico. Sem a Igreja, haveria tantos cânones quantos fiéis, mas jamais haveria o Cânon Bíblico.
Além de estabelecer os livros que fazem parte da Escritura, a Igreja ainda organizou a sua divisão em capítulos e versículos, foi também a Igreja que promoveu as primeiras traduções em diversas línguas, bem como foi na Igreja que começou a surgir os primeiros dicionários bíblicos, as primeiras obras de estudo mais aprofundado e, registre-se, foi a Igreja que concebeu o próprio termo “Bíblia”. As circunstâncias são variáveis, mas a verdade é una, e sempre ela triunfa.
Conclusão
De tudo o que foi abordado neste trabalho, muitas conclusões podem ser colhidas, mas a principal delas é a de que o Cânon Bíblico é glória suprema da Igreja Católica Apostólica Romana.
Não que a Bíblia seja um subproduto da Igreja, nem que a Igreja seja a causa primeira dos artigos de fé. Uma doutrina não é verdadeira porque a Igreja ensinou, mas a Igreja ensinou porque é verdadeira. Deus revela, a Igreja ensina e os fiéis creem; essa é a ordem. Essa é também uma prova de que a origem da Igreja só pode ser divina e suas definições em assuntos de fé e moral, por graça extraordinária de Deus, são preservadas de todo erro. Com efeito, a autoridade da Sagrada Escritura é gestada e nutre-se da autoridade da Igreja, motivo pelo qual no Credo Apostólico há doze artigos de fé e em nenhum deles figura a declaração “Creio na Bíblia Sagrada”, mas sim “Creio na Santa Igreja Católica”, porque crendo nesta, aceita-se aquela. Santo Agostinho, contemporâneo da questão, compreendeu isso com muita perfeição e proclamou categoricamente: “Eu não creria no Evangelho, se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica”.
Após analisar o aranhol de todos os problemas relacionados ao Cânon Bíblico, resta: ou acreditar na ação subterrânea do Espírito Santo de Deus em todo o processo de discernimento realizado pela Igreja; ou acreditar que tudo não passou de convenções humanas, combinadas sob os mais variados interesses de homens manipuladores. Quem é católico acredita na primeira opção.
Por outro lado, pode-se concluir que a análise protestante da formação da Bíblia derrapa-se nos pontos mais cruciais porque o protestantismo vê o andar da Igreja, mas não viu o partir. Assim, erraram em isolar a fé na Escritura da fé na Igreja, e essa contradição com a Tradição comprova-se como uma teoria de princípio autodestrutivo que se mata antes mesmo de nascer, e por isso aparece já morto. Definitivamente, o Sola Scriptura é um princípio natimorto.
Vista como deve ser, a formação do Cânon Bíblico apresenta-se como um processo complexo de vários fios, que após muitos laços e entrelaços manifesta-se enfim semelhante a um belíssimo bordado multicor, caprichosamente feito para que todos contemplem e beneficiem-se de sua inesgotável riqueza.
Bibliografia consultada:
- Bíblia Sagrada, traduzida da Vulgata e anotada pelo Pe. Matos Soares, 6a. edição, TIP. Sociedade de Papelaria, LDA. Todas as citações da Sagrada Escritura contidas no texto foram feitas com base nesta edição.
- Dom Estêvão Bettencourt OSB; Maria de Lourdes Corrêa Lima, Curso Bíblico Mater Ecclesiae, Rio de Janeiro, Letra Capital Editora, 2011.
- Fedele Pasquero, O Mundo da Bíblia, São Paulo, Editora Paulinas, 1986.
- Alessandro Lima, O Cânon Bíblico, São José dos Campos, Editora ComDeus, 2007.
- Daniel Rops, A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, São Paulo, Editora Quadrante, 1988.
- Gonzalo Báez-Camargo, Breve Historia del Canon Biblico, México, Ediciones Luminar, 1980.
- Côn. Lourenço Cavallini, A Bíblia nas Mãos, Taquaritinga, Livraria Pio XII, 1962.
- Andreas J. Köstenberger, A Heresia da Ortodoxia, São Paulo, Editora Vida Nova, 2014.
- Josef Scharbert, Introdução à Sagrada Escritura, Rio de Janeiro, Editora Vozes LTDA, 1962.
- Pe. Antônio Charbel S.D.B., Introdução Geral e Especial aos Livros do Antigo e do Novo Testamento, São Paulo, Editora das Américas, 1950.
Nasceu em 20 de dezembro de 1990. Formado em Filosofia no Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil, também cursou 3 anos de Teologia e atualmente é estudante de Direito na Faculdade Anhanguera de Teixeira de Freitas.