Inspiração Bíblica

Com o objetivo de proporcionar uma concreta colaboração a quem deseja aprender um pouco mais sobre a Bíblia, estaremos publicando nas próximas semanas uma série de quatro artigos sobre algumas importantes questões que servem de base para um seguro aprofundamento da Sagrada Escritura. Os artigos terão os seguintes temas: 1- Inspiração Bíblica; 2- Gêneros literários na Sagrada Escritura; 3- O Cânon Bíblico; 4- A interpretação do texto bíblico.

Cada artigo foi elaborado de modo resumido, a fim de introduzir o leitor nos principais pontos introdutórios do estudo bíblico, mas sem pretender ser exaustivo. A finalidade é justamente contextualizar, esclarecer e apontar caminhos para ulteriores descobertas que façam a leitura do texto sagrado ser realizada com maior proveito espiritual. Que Nossa Senhora D’Ajuda interceda junto a Deus por todos aqueles que, junto com o salmista, reza confiante: “Lâmpada para os meus passos é a tua palavra, e luz para os meus caminhos.” Salmos CXIX, 105.

Inspiração Bíblica

“Toda a Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para formar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, apto para toda a obra boa.” II Timóteo III, 16-17

Todo bom católico aprende desde muito cedo que a Sagrada Escritura é inspirada por Deus. O que isso realmente significa? O verbo “inspirar” vem do latim “inspirare” e seu sentido etimológico é o de respirar para dentro, ou ainda, soprar para o interior. Na língua portuguesa o termo inspiração possui, entre outras significações, a de receber estímulos e influências espontâneas provenientes de algo ou alguém. Há pessoas que num momento de “inspiração” acabam por fazer belíssimas composições musicais; numa tarde “inspirada”, um jogador de futebol realiza jogadas admiráveis, e assim por diante. Mas e qual é mesmo o motivo de se dizer que a Bíblia foi escrita por inspiração do Espírito Santo?

Dentro do contexto bíblico, inspiração significa a iluminação divina da mente do autor humano (hagiógrafo) de modo que ele possa, embora fazendo uso de suas próprias referências culturais e religiosas, transmitir com fidelidade integral aquilo (e só aquilo) que Deus deseja comunicar. Para além de iluminar a inteligência, o Espírito Santo também move e fortalece a vontade e todas as potências executivas do autor. Disso advém que a Bíblia, na totalidade de seus livros e em cada uma de suas partes, foi preservada de todo e qualquer erro, como ensina o Papa Leão XIII, segundo o qual em virtude da inspiração divina “de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. ESTA É A FÉ ANTIGA E CONSTANTE DA IGREJA” (Acta 13, p. 357s; Ench. Bibl. n.109s.). No entanto, quando se fala em inspiração bíblica não se deve imaginar um procedimento semelhante a um ditado em que Deus tenha soprado literalmente palavra por palavra a ser escrita, deixando ao autor humano meramente a função de um copista; na verdade, durante a composição do texto bíblico o hagiógrafo não atuava com passividade. É por este motivo que Jeremias começa o seu livro dizendo: “PALAVRAS DE JEREMIAS, filho de Helcias” (Jeremias I, 1). De fato, embora inspirado por Deus, era Jeremias quem articulava os raciocínios e escrevia, portanto, as palavras que ali foram escritas verdadeiramente podem ser consideradas dele. Um copista não toma parte na responsabilidade do texto, pois apenas desenha as letras e nem sequer tem necessidade de compreendê-las; já a inspiração bíblica, por sua vez, não dispensa a compreensão por parte do escritor e, por isso, também não pode ser entendida como o recebimento uma revelação direta e imediata, tal como acontece numa profecia.

São inúmeras as revelações diretas que Deus faz aos profetas e outros personagens na Sagrada Escritura, mas nem toda Sagrada Escritura é uma revelação imediata no sentido estrito da palavra. Quando, por exemplo, o Senhor se revela no monte Horeb, há ali uma manifestação extraordinária de Deus e em que Ele se dirige de modo direto a Moisés. “Deus disse a Moisés: Eu sou o que sou. E acrescentou: Assim dirás aos filhos de Israel: Aquele que é, enviou-me a vós.” Êxodo III, 14. Neste caso, o acontecimento em si trata-se de uma revelação direta e imediata, mas a forma como ele é narrado trata-se de um relato inspirado e mediado. Ou seja, o modo como se recebe uma palavra por meio de uma revelação súbita difere-se do modo como acontece a inspiração bíblica, pois nesse tipo de revelação as palavras vêm prontas para o seu destinatário por meio de algum evento miraculoso, enquanto na escrita bíblica o autor é inspirado enquanto narra algum acontecimento ou trata sobre alguma realidade ordinária da vida. Sendo assim, pode-se dizer que a Bíblia é um livro divino e ao mesmo tempo humano, divino na medida em que transmite fielmente o pensamento de Deus, e humano conforme assim o faz mediante uma roupagem humana, processo que assemelha-se ao mistério da Encarnação, onde o próprio Deus se revestiu da natureza do homem. Diz o Evangelho: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (S.João I,14).

Para ilustrar de modo ainda mais claro essa questão, vale analisar um interessante trecho escrito por São Paulo. Diz ele: “Quanto aqueles que estão unidos em matrimônio, mando, NÃO EU, MAS O SENHOR, que a mulher se não separe do marido; e, se ela se separar, fique sem casar ou reconcilie-se com seu marido. E o marido igualmente não repudie sua mulher.” I Coríntios VII, 10-11. Logo em seguida, continua o apóstolo: “Aos outros, SOU EU QUE LHES DIGO, NÃO O SENHOR: se algum irmão tem uma mulher não cristã, e esta consente em habitar com ele, não a repudie; se uma mulher tem um marido não cristão, e este consente em habitar com ela, não deixa esta o seu marido.” I Coríntios VII, 12-13. Ora, aqui fica perfeitamente nítido que o autor sagrado possui consciência plena do que escreve, de tal maneira que ele não estar a repetir literalmente palavras que possa ter recebido através de uma revelação direta e também não se encontra sob os efeitos de uma espécie de transe. Obviamente, muito embora o autor faça essa distinção entre o que diz o Senhor e o que ele mesmo diz, é preciso compreender que ambos os ensinamentos são inspirados e, portanto, verdadeiros; mas é digno de nota que o modo como a passagem é escrita e as expressões que nela são utilizadas põem em evidência o desatino daqueles que procuram encontrar na inspiração bíblica uma espiritualidade cabalística ou algo equivalente.

Por um outro viés, pode-se explicar da seguinte forma: na Sagrada Escritura, Deus é a causa eficiente principal e o hagiógrafo é a causa eficiente instrumental. Exemplificando: a Bíblia procede de Deus assim como uma casa procede do arquiteto que a planejou; e a Bíblia procede do hagiógrafo assim como uma casa procede do pedreiro que a executou. Deus e o hagiógrafo, ambos são autores da Sagrada Escritura, sendo Deus o autor principal. Nesse sentido, a obra é comum à causa principal e à causa instrumental, mas sob aspectos diferentes. A Escritura Sagrada é inteiramente e plenamente efeito de sua causa principal (Deus); e é também inteiramente, mas não plenamente, efeito de sua causa instrumental (autor humano). Com efeito, pode-se reconhecer nos diversos livros bíblicos o estilo próprio de cada autor, pois todos e cada um deles deixaram suas marcas na execução da escrita (uns mais eruditos e outros mais rudes, uns mais detalhistas e outros menos, entre outras particularidades). Mas não obstante tantos pormenores, a Sagrada Escritura como um todo revela seu autor principal, assim como uma casa que em muitos dos seus detalhes pode revelar o pedreiro que a construiu, mas pelo seu conjunto arquitetônico irá revelar mesmo é o arquiteto que a pensou.  

Uma outra questão precisa ser esclarecida: a finalidade da inspiração bíblica é religiosa. Os livros sagrados não foram escritos para dar ensinamentos sobre ciências naturais, mas para ensinar o plano de salvação divina, o sentido do mundo, do homem, da vida, da morte etc. É claro que os autores sagrados faziam uso dos conhecimentos “científicos” que dispunham na época, porém tais saberes estão ali nos textos como veículos que tinham o objetivo de comunicar uma mensagem compreensível para o povo daquele tempo, isto é, eles não eram ensinados, mas pressupostos. Compreende-se tal mecanismo quando se entende que a inspiração bíblica não elimina as dinâmicas, as limitações e as fragilidades próprias da linguagem humana. A despeito disso, cumpre fazer uma importante observação: para a maior parte dos estudiosos, toda e cada palavra da Escritura também é inspirada (como explicado anteriormente, inspirada, não ditada); efetivamente, não existem palavras ociosas na Bíblia. Depõe muito a favor dessa afirmação o fato dos próprios autores sagrados fazerem questão de realçar determinados vocábulos do texto bíblico com o fim de esclarecer certas perspectivas teológicas, como no seguinte caso: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. A Escritura não diz:  aos seus descendentes — como se se tratasse de muitos — mas diz como de um só: à tua descendência, a qual é Cristo.” Gálatas III, 16. Entretanto é importante lembrar que somente as palavras das línguas originais (hebraico, aramaico e grego) foram assim iluminadas. As traduções bíblicas, obviamente, não gozam da inspiração divina. Daqui decorre o cuidado que se deve ter para escolher uma boa tradução no momento em que for realizar uma leitura bíblica séria, pois traduzir, em certo sentido, já é também um modo de interpretar.

Por fim, cabe ressaltar aqui a importância de que cada pessoa que se aproxime da Sagrada Escritura o faça com a clara consciência de estar diante de um livro verdadeiramente inspirado por Deus. É essa convicção que irá inflamar a alma e robustecer a meditação dos elevadíssimos mistérios, desígnios e maravilhas que ali se encerra. De outro modo a Bíblia se tornaria para o leitor um mero objeto de curiosidade histórica e não uma obra do Espírito Santo, onde se recorre como a um tesouro de opulentíssima doutrina celeste para ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença concreta na história.

Bibliografia consultada:

  1. Bíblia Sagrada, traduzida da Vulgata e anotada pelo Pe. Matos Soares, 6a. edição, TIP. Sociedade de Papelaria, LDA. Todas es citações da Sagrada Escritura contidas no texto foram feitas com base nesta edição.
  2. Sessão IV do Concílio de Trento (Sobre as Escrituras, 8 de abril de 1546).
  3. Capítulo II da Constituição Dogmática “Dei Filius”, 24 de abril de 1870 (Concílio Vaticano I).
  4. Carta Encíclica “Providentissimus Deus”, do Papa Leão XIII (18 de novembro de 1893).
  5. Carta Apostólica “Quoniam in re”, do Papa Pio X (27 de março de 1906).
  6. Carta Encíclica “Spiritus Paraclitus”, do Papa Bento XV (15 de setembro de 1920).
  7. Motu Próprio “Bibliorum Scientiam”, do Papa Pio XI (27 de abril de 1924).
  8. Carta Encíclica “Divino Afflante Spiritu”, do Papa Pio XII (30 de setembro de 1943).
  9. Capítulo III da Constituição Dogmática “Dei Verbum”, 18 de novembro de 1965 (Concílio Vaticano II).
  10. Discurso do Papa Paulo VI aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica (14 de março de 1974).
  11. Discurso do Papa João Paulo II aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica (26 de abril de 1979).
  12. Catecismo da Igreja Católica, parágrafos 101-141 (11 de outubro de 1992).
  13. Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Verbum Domini”, do Papa Bento XVI (30 de setembro de 2010).
  14. Pe. Antônio Charbel S.D.B., Introdução Geral e Especial aos Livros do Antigo e do Novo Testamento, São Paulo, Editora das Américas, 1950.
  15. Dom Estêvão Bettencourt OSB; Maria de Lourdes Corrêa Lima, Curso Bíblico Mater Ecclesiae, Rio de Janeiro, Letra Capital Editora, 2011.

Maurino dos Reis Pereira

Nasceu em 20 de dezembro de 1990. Formado em Filosofia no Seminário Maria Mater Ecclesiae do Brasil, também cursou 3 anos de Teologia e atualmente é estudante de Direito na Faculdade Anhanguera de Teixeira de Freitas.

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